O INTERESSE PÚBLICO NA PROPRIEDADE

O INTERESSE PÚBLICO NA PROPRIEDADE

RESUMO

Este artigo explora a razão do interesse público e suas implicações na relativização da propriedade individual em favor da coletividade. Nesta concepção, a propriedade tem objetivo social, e, destina-se a dar contribuição ao desenvolvimento da coletividade. Numa analise mais simplista poderia se dizer que o interesse público se externa na relativação da propriedade através do seu exercício sujeito a função social. Assim este trabalho jurídico constitui-se em contribuição para o desenvolvimento das ciências jurídicas brasileiras, especialmente o aprimoramento técnico do operador do direito. Quanto ao enfoque prático, o artigo compreende especificamente o tema propriedade em conceito alargado, acrescido de interesse público externado no paradigma da função social. O tema ganhou bastante relevância legislativa, uma vez que foi inicialmente inserido dispositivo garantidor da propriedade, e em seguida a determinação constitucional que a propriedade deve cumprir sua respectiva função de interesse público social. Com a nova ordem constitucional observou-se que a propriedade restou garantida, mas, ao seu lado, como cláusula pétrea ou como princípio da ordem econômica, o constituinte fez inserir que ela deva cumprir sua função social. Suas implicações no direito administrativo, ante sua notória tendência de constitucionalização, é impar, visto que diversos instrumentos de gerencia administrativa direta sobre o domínio particular, passam pelo correto entendimento e aplicação do instituto social da propriedade.

 

Palavras-Chave: relativação; propriedade; função social.

ABSTRACT

This article explores why the public interest and its implications to relativize the individual property in favor of the collective. In this design, the property has social purpose , and intended to give contribution to the development of the community . In a more simplistic analysis could be said that the public interest in foreign relativize property through its exercise subject to social function. So is this legal work in contributing to the development of legal sciences Brazilian, especially the technical improvement of the operator ‘s right. As for the practical focus, the article comprises specifically the subject property in broad concept, plus voiced public interest in the paradigm of social function. The issue gained much legislative relevance, since it was originally embedded device guarantor of property, then the constitutional provision that the property should fulfill their respective social function of public interest. With the new constitutional order was observed that the property remains guaranteed, but by your side, as entrenchment clause or as the beginning of the economic order , the constituent insert made ​​that it should fulfill its social function. Implications in administrative law at his notorious tendency to constitutionalization is odd, since several instruments manages direct administrative on the particular domain, pass through the correct understanding and application of the institute of social property.

Keywords : Relativity; Property; Social Function .

 

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.. 6

2 PROPRIEDADE.. 10

3 HISTÓRICO.. 11

4 CARACTERÍSTICAS DO DIREITO DE PROPRIEDADE.. 13

5 A RELATIVAÇÃO DA PROPRIEDADE PELA SUBMISSÃO AO INTERESSE PÚBLICO ATRAVÉS DA FUNÇÃO SOCIAL.. 15

6 CONCLUSÃO.. 22

REFERÊNCIAS.. 23

TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE.. 25

 

 

A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

Sandro Volpato[1]

1 INTRODUÇÃO

Não há como se falar na intervenção do estado na propriedade pelo interesse público, sem antes ao menos dedicar algumas linhas ao direito de propriedade em si mesmo.

A propriedade no direito brasileiro importa no direito de usar, gozar, usufruir e dispor de um determinado bem, e de reavê-lo, de quem quer que injustamente o esteja possuindo.

A propriedade é tão importante que já aparece no “caput” do artigo 5º da Constituição Federal, vejamos sua citação:

 

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.

 

Ainda na Carta Constitucional é reiterado no mesmo artigo 5º, desta vez no inciso XXII, nos seguintes termos: “É garantido o direito de propriedade”.

O direito de propriedade é um direito individual e como todo direito individual, uma cláusula pétrea da Constituição Federal.

Neste sentido o artigo 170, incisos II e III da Constituição Federal:

 

A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: II propriedade privada; III função social da propriedade privada.

 

Outrora considerado um direito absoluto, oponível contra qualquer perturbação, frente a quem quer que fosse, observa-se que atualmente o direito de propriedade vem sofrendo alterações significativas no seu conceito e exercício.

Estas alterações vem de passado relativamente recente, aproximadamente nos últimos cem anos, e vem sendo solidificadas pela doutrina e jurisprudência.

O caso de nosso estudo revolve o uso socializante da propriedade com o cumprimento, por parte do proprietário, do interesse público atribuído ao domínio.

O paradigma do interesse público da propriedade é externado na legislação brasileira pelo adágio da função social nos textos legais.

Este axioma sobressai na terminologia jurídica “A propriedade atenderá a sua função social” (art. 5º, XXIII da CF).

E mais “A propriedade urbana cumpre a função social quando obedece às diretrizes fundamentais de ordenação da cidade fixadas no plano diretor” (art. 182, §2º da CF).

O plano diretor, que é o instrumento de planejamento legal urbanístico nos municípios, estabelecerá quais áreas são residências, comerciais e industriais; quais são as zonas de tombamento e etc.

Por sua vez a propriedade rural cumpre a função social quando, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, atende simultaneamente os requisitos do artigo 186 da Constituição Federal:

 

I – Aproveitamento racional e adequado; II – Utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – Observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – Exploração que favoreça o bem estar dos proprietários e trabalhadores.

 

Este conceito de função social na propriedade partiu da observação dos movimentos sociais rurais, cujas entidades organizadas passaram a bradar e exigir um melhor aproveitamento da terra disponível para agricultura e/ou pecuária, atacando os denominados “latifúndios improdutivos”.

A partir daí conceituou-se, o direito de propriedade podia sofrer ataques judiciais com a consequente perda da propriedade de grandes áreas de terra, com indenizações que muitas vezes não atendiam aos interesses dos grandes  proprietários improdutivos.

O Direito como ciência, portanto, passou a absorver estes conceitos e a traduzi-los como alterações e certa relativização do direito de propriedade.

O uso consciente dos recursos naturais e o respeito à manutenção de um meio ambiente equilibrado também foram fatores que, nas últimas décadas, passaram a representar uma exigência aos proprietários de terras, em especial, também, nas áreas rurais.

Já não bastava mais ser dono para poder usar e abusar dos recursos da terra tais como os recursos hídricos e vegetais.

Na mesma tendência, o exercício da propriedade sob o ponto de vista ambiental passou a ter barreiras, tais como a reserva de áreas de preservação permanente e legal, de modo que representou da mesma forma limites legislativos que foram edificados dentro do Direito.

Por fim podemos dizer que a propriedade não é mais um direito absoluto e puro, assim o proprietário tem que dar uma função de interesse público social à propriedade.

É bom dizer que a intervenção na propriedade privada ficou reservada com exclusividade ao estado.

O Estado poderá intervir na propriedade privada e nas atividades econômicas para propiciar o bem estar, desde que obedeça aos limites constitucionais que amparam o interesse público e garantem os direitos individuais.

Se a propriedade estiver cumprindo a sua função social: A intervenção só pode ter por base a supremacia do interesse público sobre o particular, ou seja, só poderá ser feita por necessidade pública, utilidade pública, ou por interesse social. A indenização neste caso se da mediante prévia e justa indenização em dinheiro.

Neste sentido o artigo 5º, inciso XXIV da Constituição Federal:

 

A lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição.

 

Também neste sentido o artigo 182 §3º da Constituição Federal: “As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro”.

O § 4º e incisos também é muito elucidativo, vejamos:

 

É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para a área incluída no plano diretor, exigir nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente de: I – Parcelamento ou edificação compulsórios; II – Imposto sobre propriedade predial e territorial progressivo no tempo; III – Desapropriação com o pagamento mediante títulos da divida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate em até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurado o valor real da indenização e os juros legais.

 

Em ambas as hipóteses ocorrerão a indenização, pois caso contrário haveria confisco, o que é proibido pela Constituição Federal, salvo na hipótese de expropriação de glebas utilizadas para a plantação de plantas psicotrópicas.

A questão deste estudo é até onde se poderá relativizar a propriedade individual em favor do interesse público e social.

 

2 PROPRIEDADE

Não há como estudar a função social da propriedade, sem estuda-la propriamente.

Na República Federativa do Brasil, para uma melhor compreensão do direito de propriedade devemos partir de uma posição filosófica positivista.

Nestas considerações herdamos o apego ao legalismo clássico. A verdade é que nossos operadores do direito tem preleção por cânones legais, mais que seus diletos contemporâneos de outras culturas ocidentais.

O direito ao domínio da propriedade está descrito no artigo 1.228, caput, do Código Civil, o qual preleciona que consiste na “faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.” (BRASIL, 2002).

Nesta linha ousamos extrair o conceito doutrinário de Pontes de Miranda (2001, p. 37) para propriedade, o grande professor de todos os operadores do direito: “Em sentido amplíssimo propriedade é domínio ou qualquer direito patrimonial”.

Mello (1987, p. 39) também se posicionou sobre o tema, vejamos:

O direito de propriedade é a expressão juridicamente reconhecida à propriedade. É o perfil jurídico da propriedade. É a propriedade, tal como configurada em dada ordenação normativa. É, em suma, a dimensão do âmbito de expressão legítima da propriedade: aquilo que o direito considera como tal. Donde as limitações ou sujeições de poderes do proprietário impostas por um sistema normativo não se constituem em limitações de direitos, pois não comprimem nem deprimem o direito de propriedade, mas, pelo contrário, consistem na própria definição deste direito, compõem seu delineamento e, deste modo, lhe desenham os contornos. Na Constituição – e nas leis que estejam conformadas – reside o traçado da compostura daquilo que chamamos de direito de propriedade em tal ou qual país, na época tal ou qual.

A propriedade é à base do regime jurídico e político civil de nosso estado, é um conceito ideológico, e, sua relativação indica a tendência social moderna ocidental, onde o direito individual e livre deve ser limitado em favor do espírito comunitário.

3 HISTÓRICO

A origem sociológica da propriedade é remota sendo que sua manifestação mais antiga é citada na Lei das XII Tábuas, que trazia dispositivo conferindo às pessoas o direito de utilizar uma determinada área para plantação, de forma temporária e exclusiva.

Cretella Júnior (1986, p. 16), anota que “mesmo entre os romanos dos primeiros tempos, o caráter absoluto (da propriedade) não é totalmente invulnerável”,  já que, desde a Lei das XII Taboas  se observam algumas restrições.

Com o decorrer do tempo, já na Idade Média, a propriedade, era a posse da terra. Com o fim do Império Romano, seguiu absoluta, inserida no sistema chamado feudalismo, cuja predominância se deu na Europa, quando os denominados senhores feudais, minoria agressiva representada pelos mais abastados, que possuíam grande extensão de terras, e os que não possuíam, chamados vassalos.

Conforme ensinamento do ilustre jurista baiano Gomes (1999, p. 109):

A propriedade medieval caracteriza-se pela quebra desse conceito unitário. Sobre o mesmo bem, há a concorrência de proprietários. A dissociação revela-se através do binômio domínio eminente e domínio útil. O titular do primeiro concede o direito a utilização econômica do bem e recebe, em troca, serviços ou rendas. Quem tem o domínio útil perpetuamente, embora suporte encargos, possui, em verdade, uma propriedade paralela.

O sistema de capitanias hereditárias no Brasil Colônia era a reprodução do sistema de feudos da idade média, claro a nossa moda.

A queda do feudalismo e a propriedade medieval, só foram afastadas com a Revolução Francesa em 1789, onde a propriedade passou a ser superprotegida, integrando o elenco dos direitos individuais do cidadão.

Não é à toa que o Código Napoleônico ficou conhecido como o Código da Propriedade.

Esta percepção perdura, inclusive com o advento do chamado estado social.

O Direito Canônico por sua vez incutiu a ideia de que o homem está legitimado a adquirir coisas, pois a propriedade é garantia de liberdade individual. As reflexões sobre a função social da propriedade ganharam espaço, inicialmente na filosofia teológica, tendo como defensores, dentre outros, Santo Ambrósio, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino.

As encíclicas papais legitimaram este pensamento através de João XXIII, e Pio XI, que influenciaram fortemente a legislação portuguesa e brasileira, ante sua notória ascendência religiosa.

Não há como se negar o monopólio da Santa Igreja, quanto ao ensino tanto no Brasil como em Portugal, sendo que indiscutivelmente nossos pensadores são em sua maioria oriundos de colégios católicos, salvo raras e legítimas exceções.

De forma que não é nova a ideia de função social da propriedade.

Na Europa, na primeira metade do século XIX, viveu uma época de grande expansão, sob a concepção econômica liberal.

A propriedade liberal sem limites, e, teve em contraposição, teorias filosóficas e jurídicas, tais como o ideário comunista-socialista, sistematizado no manifesto do partido comunista, de 1848, pregando a negação da propriedade agrária e de todos os outros bens de produção.

Após essas duas posições, a primeira, da propriedade liberal ilimitada, e a segunda, que prega a negação da propriedade individual, no final do século XIX, surge, por fim, uma terceira posição: a concepção da função social da propriedade.

A doutrina da função social da propriedade surgiu inicialmente com a Igreja Católica como já antecipado.

Diante desta nova concepção filosófica e teológica da propriedade nossos  pensadores passaram a defender a ideia que a propriedade devia exercer uma função social, contraposto a função individualista, como outrora era pensada.

Esta nova ordem relativista da propriedade impera em nossa legislação, onde ousando citar Pereira (1992), nosso Código Civil, preferiu não dar uma definição de propriedade, apenas enunciou os poderes do proprietário.

Vale ressaltarmos, que a opção adotada pelo Código Civil Brasileiro para conceituar propriedade, foi adotada também por outros países como a Alemanha, Suíça, França e Áustria, entre outros da Europa.

Nos dias atuais, como se observa, o conceito socializante da propriedade se  avulta nos países ocidentais. Consoante a conclusão de Washington de Monteiro (1989), há muito tempo não se sabe aonde chegaremos, pois os movimentos vindos do povo estão cada vez mais organizados e começam a ser ouvidos e tolerados, sendo que seus ideais já repercutem nas ordenações legais.

 

4 CARACTERÍSTICAS DO DIREITO DE PROPRIEDADE

Varias são as características da propriedade, mas como este trabalho não tem o objetivo civilista propriamente dito, escolhemos aquelas que tem maior afinidade com este estudo.

A função social condiciona tanto os caracteres quanto os elementos do direito de propriedade.

Assim, os caracteres de absolutismo, exclusividade e perpetuidade são atingidos profundamente.

Da mesma forma, o conteúdo positivo do direito de propriedade (usar, gozar e dispor da coisa) e sua proteção específica (o direito de reavê-la de quem quer que injustamente a detiver) são condicionados pela função social.

Citando Orlando Gomes (1999), o direito de propriedade possui diversas características, quais sejam as principais, absolutividade, exclusividade, perpetuidade.

A absolutividade do direito de propriedade refere-se à oponibilidade que tal direito tem contra todos os indivíduos, ou seja, o direito de propriedade é oponível erga omnes.

Como ensina Barros (2008, p. 32):

O direito de propriedade é absoluto no sentido de ser oponível contra toda e qualquer pessoa (erga omnes), ao contrário de outros direitos que são relativamente oponíveis (inter partes), como, por exemplo, no direito de crédito. Essa oponibilidade é fruto da publicidade que goza o direito de propriedade, presumindo-se plena e exclusiva até prova em contrário.

A exclusividade do direito de propriedade não pode ser confundida com a impossibilidade de uma propriedade ter dois ou mais proprietários. O que significa, na verdade, é que uma propriedade não pode possuir dois direitos antagônicos sobre ela.

De acordo com Barros (2008, p. 33):

O caráter de exclusividade da propriedade deriva da presunção estabelecida no art. 1.231 do CC e tem o sentido de que, em regra, sobre um bem somente pode haver um direito de propriedade, e que o exercício deste direito não exclui o exercício por parte de outrem, ou seja, um bem não pode pertencer exclusivamente e simultaneamente a duas ou mais pessoas em posições opostas.

A perpetuidade do direito de propriedade significa que o proprietário da coisa terá direito sobre ela enquanto viver. Todavia, decorrente às atuais limitações ao direito de propriedade, a perpetuidade está relativizada. A propriedade será perpétua enquanto o proprietário propicia a ela a função social adequada ao seu padrão.

Exemplo da relativização da perpetuidade do direito de propriedade encontramos no §2º do art. 1276 do Código Civil, que estabelece:

O imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições. (BRASIL, 2002).

Sobre a perpetuidade, costuma-se, ainda, afirmar que o direito de propriedade independe de seu uso, isto é, que a propriedade subsiste ainda que seu proprietário não faça uso dela, Essa afirmação encontra ressalvas na atualidade, posto que o direito de propriedade somente é legítimo se estiver de acordo com a função social. Há uma forte tendência doutrinária e jurisprudencial em negar o direito de propriedade injustificado.

Caso não atenda a função social da propriedade, o proprietário pode perdê-la, pondo-se fim a sua característica da perpetuidade.

 

5 A RELATIVAÇÃO DA PROPRIEDADE PELA SUBMISSÃO AO INTERESSE PÚBLICO ATRAVÉS DA FUNÇÃO SOCIAL

Hodiernamente as características supra mencionadas da propriedade acham-se seriamente amortecidas, pela relação matrimoniada com a função social.

Podemos dizer que a propriedade não é mais um direito absoluto e puro, e o proprietário tem que dar uma função de interesse público social à propriedade.

Pelo contorno da função social absolutismo, exclusividade e perpetuidade passam a ser relativos, como também o conteúdo positivo do direito de propriedade (usar, gozar e dispor da coisa) e sua proteção específica (o direito de reavê-la de quem quer que injustamente a detiver) são condicionados pela função social.

O principal defensor desta tese foi Leon Duguit, com base nos ensinamentos do positivismo do douto Augusto Conte, bem como nos ensinamentos de São Tomás de Aquino e Aristóteles.

Expôs a idéia de que o proprietário não é, em verdade, o titular de um direito subjetivo mas, apenas, o detentor da riqueza, uma espécie de gestor da coisa que deveria ser socialmente útil.

A propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar uma função social do detentor da riqueza mobiliaria e imobiliária; a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de emprega-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum , um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder. (COLARES, 2001, p. 21).

Vale ressaltarmos , que segundo esta nova forma de entender a propriedade, a mesma continua sendo um direito individual, mas, um direito individual condicionado ao bem-estar da comunidade.

Quanto ao enfoque prático, o tema propriedade adquiriu conceito alargado, acrescido de interesse público externado no paradigma da função social.

A doutrina que entende que a propriedade deve atender uma função social se espalhou pelas constituições nascentes no início do século XX. Foi o caso da Constituição do México, de 1917, e da Constituição de Weimar, de 1919, e da República Federativa do Brasil em 1934.

A propriedade não é absoluta e individual como outrora. Agora o seu exercício tem que buscar o bem estar social.

Segundo Barros (2008, p. 33),

Já se foi o tempo em que o fato de ser proprietário era encarado como um direito divino, em que seu titular era livre para dele fazer o uso que bem entender. Na atualidade, o exercício da propriedade é limitado por diversos princípios e dispositivos legais, como, por exemplo, a função sócio-ambiental, o Estatuto da Cidade, as regras sobre o direito de vizinhança etc.

A propriedade também pode ser limitada em decorrência de negócio jurídico. De acordo com Barros (2008, p. 32),

…a propriedade também pode ser voluntariamente limitada pelo seu proprietário através de disposição contratual. Assim acontece quando, p. ex., uma pessoa doa um bem a outra com cláusula de incomunicabilidade ou inalienabilidade.

 

O direito a propriedade não é um direito absoluto, assim o proprietário tem que atender a função social à propriedade.

Mais uma vez, conclui-se que a função social da propriedade não se aplica à supressão do direito de propriedade, mas sim impõe a utilização de maneira que favoreça não só o proprietário, mas toda a coletividade.

A Constituição Federal de 1988 não deixou dúvidas quanto à obrigatoriedade do atendimento da função social da propriedade, inserindo, inclusive, o dispositivo sobre o direito de propriedade e a função social da propriedade no Título dos Direito e Garantias Fundamentais, tamanha a importância do tema para a sociedade.

A função social surge da instituição do Estado Social e Democrático de Direito como imperativo dos princípios de igualdade e justiça, referidos no preâmbulo, e de dignidade da pessoa humana, constante do art. 1º, inciso III, da Carta Magna de 1988.

Vejamos o art. 5º, XXII, da Carta Máxima Federal: “é garantido o direito de propriedade”. Em seguida, sobre a função social da propriedade, estabelece o inciso XXIII: “a propriedade atenderá sua função social”. (BRASIL, 1988)

O tema ganhou bastante relevância constitucional, uma vez que foi inicialmente inserido dispositivo garantidor da propriedade, e em seguida a determinação constitucional que a propriedade deve cumprir sua respectiva função de interesse público social.

Ao garantir o direito de propriedade, o constituinte brasileiro preocupou-se em assegurar que a propriedade deveria atender à sua função social, visto que é interesse comum da sociedade. O exercício do direito de propriedade não poderia tornar-se um problema para a coletividade.

A função social da propriedade também aparece no Título da Ordem Econômica e Financeira, precisamente no art. 170, III, que assim estabelece:

 

A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: […] III – função social da propriedade. (BRASIL, 1988).

 

Ainda no mesmo título, observamos a presença da função social da propriedade no Capítulo da Política Urbana, especificamente no art. 182, § 2º, da Constituição Federal, que assim expressa:

A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. […] § 2º – A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. (BRASIL, 1988)

Referindo-se à função social da propriedade rural, o Capítulo da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária, em seu art. 184, caput, da Constituição Federal, assim determinou:

Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei. (BRASIL, 1988).

Definindo como é cumprida a função social da propriedade rural, o artigo 186, caput, da Carta Magna, assim prescreveu:

A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. (BRASIL, 1988).

Esta leitura leva-nos a constatar que a propriedade saiu das raízes do direito civil, e que atualmente encontra-se numa teia de normas administrativas entre outros ramos do direito.

A Constituição Federal positivou-se, assim, um novo regime jurídico para o entendimento do instituto da propriedade. Observe-se bem, que a garantiu, contudo não a definiu nem a conceituou, e instalou uma concepção jurídica socializante.

Esta concepção jurídica socializante é de tal magnitude que o constituinte fez inseri-la como princípio da atividade econômica, no capítulo que trata sobre a ordem econômica e financeira, conforme os ditames da justiça social.

Da aplicação das normas constitucionais citadas, decorre em nosso entender os seguintes efeitos:

  1. O primeiro efeito é relativo às cláusulas pétreas, que não admitem emenda para sua alteração.

A Constituição, no art. 60, § 4º e inc. IV, estabelece que: “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:… Os direitos e garantias individuais”. Assim, a conclusão inevitável é que a “função social da propriedade” (BRASIL, 1988) é cláusula pétrea, não podendo ser alterada ou suprimida da carta, nem ameaçada ou desconsiderada.

  1. O segundo efeito refere-se à aplicação imediata. É que as normas de direitos e deveres individuais têm aplicação imediata. Ordena a Constituição Federal, no art. 5º (…), § 1º, que “as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
  2. O terceiro efeito relaciona-se com a efetividade da função social, importa na obrigação para o proprietário de cumprir a função social da propriedade.

Pela condição da função social a propriedade, na sua previsão no inciso XXIII, do art. 5º, da CF, tem contexto direito subjetivo público.

Não só o Estado é que estaria autorizado a cobrar do proprietário o aproveitamento racional e adequado da propriedade. Também o particular estaria legitimado a exigir do proprietário a utilização social do bem, pois, em face da inovação da Constituição Federal de 1988, introduzida pelo art. 5º, inciso XXIII, “a propriedade atenderá a sua função social”, estaria legitimada a atuação do particular na exigência, ao proprietário, para que destine aproveitamento adequado à sua propriedade.

A função social passou a fazer parte do conceito de propriedade ampliando sua compreensão.

Na mesma senda segue Orlando Gomes (1986) ao disseminar que o princípio da função social da propriedade atinge a substância do direito de propriedade, dando origem a uma nova concepção do instituto.

A propriedade deixou de ser vista pelo ângulo do direito individual para ser no contexto de coletividade.

A função social da propriedade também consta do art. 1.228 §1º do CC de 2002:

O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. (BRASIL, 2002).

Nesta linha a natureza jurídica da função social da propriedade é princípio de ordem pública, que não pode ser derrogado por vontade das partes, conforme previsão descrita no parágrafo único do art. 2.035 do CC:

Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos. (BRASIL, 2002).

 

As normas de direito privado sobre a propriedade, no caso o Código Civil, agora tem de ser compreendida de conformidade com a disciplina que a Constituição de 1988 lhe impõe.

A concepção da Constituição como norma suprema faz com que seus princípios e valores se espalhem por todo o tecido normativo alcançando a área classicamente tidas como privadas como o Código Civil. A Constituição é precisamente a primeira das normas do ordenamento inteiro, a fundamental, lex superior.

Como bem lembra Greco (1990, p. 110),

O prestígio constitucional da cláusula da ‘função social’ traz em seu bojo o reconhecimento de que, sobre a propriedade, há uma confluência de interesses, sendo uns de cunho exclusivamente individual e outros de caráter coletivo. Na função, tem-se, em última análise, uma atividade pela qual alguém cuida de interesses alheios, mediante a realização de atos sobre bens que estejam ao seu alcance material.

Não é outro o ensinamento do eminente Grau (1983, p. 29):

 

…se a propriedade dotada de função social não estiver sendo atuada de modo que essa função seja atendida, teremos que o detentor de propriedade como tal já não será mais titular de direito (de propriedade) sobre ela.

 

Nesta linha o princípio da função social da propriedade, atinge a substância do direito dando origem a uma nova concepção do instituto.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, restringindo-se ao intuito puramente constitucional, é também extremamente elucidativa, vejamos:

O direito de propriedade não se revela absoluto. Está relativizado pela Carta da República – arts. 5º, XXII, XXIII e XXIV, e 184.” (MS 25.284, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 17-6-2010, Plenário, DJE de 13-8-2010.)

E mais:

O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na própria CR. O acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente constituem elementos de realização da função social da propriedade. (ADI 2.213-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 4-4-2002, Plenário, DJ de 23-4-2004.) No mesmo sentido: MS 25.284, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 17-6-2010, Plenário, DJE de 13-8-2010).

Observa-se que a previsão constitucional da propriedade é voltada aos interesses coletivos, qualquer proteção a propriedade não pode sobrepor-se ao interesse comum.

A perspectiva da função social condiciona o exercício individual da propriedade a um ângulo socializante.

Esta sinopse jurisprudencial tem objetivo agregativo e confirmativo daquilo debatida anteriormente, para que tenhamos um suporte empírico, decorrente da aplicação prática do direito pelos seus operadores.

Desse modo, no sistema jurídico brasileiro, a propriedade que atende sua função social é legitima, e, a que não cumprir não será mais objeto de proteção jurídica.

 

6 CONCLUSÃO

Com o desenvolvimento do trabalho, analisamos o conceito de propriedade sua evolução, sob o prisma do interesse público.

Verificamos que o princípio do interesse público no direito administrativo se exterioriza na propriedade, através de sua função social, principalmente.

Numa sinopse, a propriedade não deve mais atender ao interesse exclusivo de seu senhor, mas também o de toda a coletividade.

Na Constituição Federal de 1988, o assunto ganhou importante relevância e contorno, especialmente no que diz respeito ao estabelecimento codificado da função social na propriedade. Desde então, no Brasil, a função social da propriedade é requisito para a manutenção do domínio.

Alias no modelo de estado como configurado na Carta Máxima da República Federativa do Brasil, a função social passou a ser requisito de praticamente todos os institutos do direito ligados ao senhorio absoluto e perpétuo da coisa civil.

Ficou evidente a importância da propriedade para a coletividade, não só para a produção de riquezas, mas também para o meio ambiente como lugar onde a humanidade reside, questão de sérias preocupações no mundo atualmente.

O que se verifica dizer que a função social, tal como modulada no texto constitucional, passou a ser parte integrante do novo conceito de propriedade, permitindo-nos a conclusão de que o detentor do domínio só estará agasalhado pela Constituição Federal, se der a sua propriedade uma função social.

Enfim, é o resultado da supremacia do interesse público diante do privado. É a mudança de um paradigma, pois há tendência moderna é uma tônica socializante dos bens privados no Brasil.

Concluindo, verifica-se que a função social impregna o interior do direito de propriedade, passando também a fazer parte deste direito, qualificando-o, resultando daí que, sem função social, não mais existe propriedade legalmente protegida, por que não atende ao interesse público.

 

REFERÊNCIAS

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SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 9. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1994.

 

TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito e que se fizerem necessários, que isento completamente a Universidade Anhanguera-Uniderp, a Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes e o professor orientador de toda e qualquer responsabilidade pelo conteúdo e ideias expressas no presente Trabalho de Conclusão de Curso.

Estou ciente de que poderei responder administrativa, civil e criminalmente em caso de plágio comprovado.

 

Braço do Norte, 22 de novembro de 2013.

 

 

SANDRO VOLPATO

ACADÊMICO

[1] Bacharel em direito pela UNISUL – Turma de 1996/B; Advogado inscrito na seção de Santa Catarina pelo número 11.749 desde setembro de 1997; Secretário Municipal de Governo e Cidadania no período de 1996/1997 do município de Braço do Norte; Assessor Técnico Legislativo da Câmara Municipal de Vereadores de Braço do Norte – Santa Catarina desde maio de 1993; Ex procurador dos municípios de Rio Fortuna, Santa Rosa de Lima e Gravatal, e, das Câmaras Municipais de São Ludgero, São Martinho, Santa Rosa de Lima, Rio Fortuna, todas no estado de Santa Catarina.

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